sexta-feira, 29 de abril de 2011

Porque Gisela entendia que viveria para sempre essa coisa de altos e baixos, não queria dizer que não a afetasse quando lhe ocorriam as mudanças. Estava tão feliz há poucos dias e acordara sentindo-se menos. Ao fim do dia, era o cocô do cavalo do bandido. Não compreendia algumas coisas, outras admitia que para todo o sempre a acompanhariam. Queria mesmo era não poder ouvir algumas coisas, algumas palavras-opiniões. Vivera até ali tantas coisas, mas sua pele e seu coração ainda eram frágeis, apesar de tudo. Sobreviveria a essas e a mais outras coisas sim. Mas, hoje, Gisela era menos e a subtração cortava-lhe a pele. Talhava-a. Doía.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Gisela abismava-se sempre e cada vez mais com as coisas que (lhe) aconteciam. Lia os sinais. Morria de medo de estar delirando. Morria de felicidade por achar que não estava delirando. Abria as janelas do quarto. Deixava o vento entrar. E sorria, sorria, sorria, meu Deus! Gisela sorria. Achava graça das coisas que pensava. E sentia que sim, sim, sim, sim.
Gisela acordou de um cochilo entendendo o posicionamento de sua mãe. Agora sim compreendia as decisões dela e as execuções do que ela decidira há tempos (antes mesmo do nascimento das filhas?) e executara mexendo com a vida de Gisela e de suas irmãs. Mas, Gisela compreendia agora exatamente porque chegava perto de chegar às mesmas conclusões de sua mãe. E começaria a executar, seguindo os mesmos caminhos, mas não de maneira imperceptível para si mesma. Era questão de tempo, sabia. Era o que lhe sobrava, como fora o que sobrara à sua mãe.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Alucinante Alice



Alice resolvera ler aquela carta que guardava há anos. Colocou música na vitrola (mister se fazia o procedimento) e ouviu:

"Dentro do nosso mundo
Um outro mundo achaste
E as cores de que fala
Eu não conhecia
Alguma coisa havia antes desse espaço
No oco da nogueira um tombo no infinito
De cada biscoito tiraste um pedaço
Pode ouvir teu grito
Alucinante Alice quando você fala
Meu coração se quebra como louça
Alucinante Alice quando você beija
O mel dos anjos entra em minha boca, em minha boca, em minha boca
A porta da verdade estava bem fechada
Mas nada resistiu a chave que eu te trouxe
Da que de onde se vê ainda não se vê nada
Se não se tem os dentes presos nesse doce
De limão galego de laranja amarga, de batata doce

Alucinante Alice quando você fala
Meu coração se quebra como louça
Alucinante Alice quando você beija
O mel dos anjos entra em minha boca, em minha boca, em minha boca

A porta da verdade estava bem fechada
Mas nada resistiu a chave que eu te trouxe
Da que de onde se vê ainda não se vê nada
Se não se tem os dentes presos nesse doce
De limão galego de laranja amarga, de batata doce
Alucinante Alice quando você fala
Meu coração se quebra como louça
Alucinante Alice quando você beija
O mel dos anjos entra em minha boca, em minha boca, em minha boca"

Abriu a carta. Olhou-a bem, sem lê-la. Dobrou-a e guardou-a primeiro próximo ao peito, depois: dentro da caixa de onde a havia retirado.
O ritual lhe fora bastante para ela saber que nunca mais. Sempre racional, saberia levar sua vida até o fim com aquela decisão. Mirava a vida das irmãs (e a dela mesma) de soslaio. Evitaria. Para sempre evitaria ler aquilo que partira seu coração apenas uma vez na vida. Para nunca mais. Nunca mais. Precisava repetir em voz alta. PARA NUNCA MAIS!

Saberia Alice que também a sua própria vida ela olhava de soslaio? Saberia ela que nada mais era verdade e nem a tirava do torpor e da solidão?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gisela entendera algo remoto quando encarou-se no espelho (isso esteve em seus olhos há quanto tempo, nem indagou-se, perplexa). Temeu a revelação. Era forte descobrir que. Era como cair num poço. Acostuma-se ao poço? Lera certa vez que sim: à pedra do poço, à água do poço, ao poço do poço acostuma-se. Mas, Gisela sentiu vontade de sair. Sair do poço. Pois, entendera que de poço em poço se morre. E morrer, em algumas ocasiões: dói.

domingo, 24 de abril de 2011

Muitos dias depois, amanheceram as três sentindo-se felizes. Ainda que de maneira diferente cada uma. Cumpriram seus rituais de iniciação do dia. Gisela, pegou o telefone porque tinha tido a idéia de encontrar as irmãs para um chá com biscoitos e reconciliações. Encontraram-se. E nesse dia, tudo foi feliz. À noite, a lua, estava plena, cheia, colada num céu negro de tão azul. Voltaram para casa após comentarem da lua. E nessa noite, dormiram em paz.

sábado, 23 de abril de 2011

Alice, que não compreendia o amor simplesmente porque sentia medo e porque achava que compreender é justificar, Alice encheu taças e taças de vinho tinto, espesso e embebedou-se. Dormira pesadamente. Perdera a hora para mais um dia em que sentia como se nada fizesse e que para ela era como não ter vivido. Permitiu-se ficar de ressaca, vestida em pijamas, em cima da cama, com o pensamento ela mesma não quereria saber em que lugar.
Esther não entendia que força era aquele que possuía Janaína para entrar e sair de sua vida quando assim desejasse ou ainda mesmo quando nem mais desejava. Esbravejou contra dois ou três pensamentos que a atingira. Aquele mês, desde a conversa com Gisela, desde que sua irmã trouxera à tona aquele assunto, tinha sido um inferno. Voltara a fumar. Voltara a percorrer as ruas todas. Voltara a ouvir o choro abafado da criança que ela não permitia falar o nome, não permitia que...Gisela sofria, sim, mas onde o direito de fazer aquilo? Onde? Lembrara-se, Esther, de que ficara trancada por tempos, e...Não. Decididamente não mais. Mas, como?

As palavras e os sentimentos de Esther me chegavam assim: entrecortados e confusos. Escrever essas três mulheres não seria nada fácil. E eu? Me pergunto a mim: e eu, onde eu?
Gisela sangrava. Doía, doía, doía. Levou a mão até o peito e depois olhou os dedos para ver se havia sangue. Não havia. O toque entre os dedos lembrou-lhe carícias antigas e, depois, a solidão. Gastou tempo infindo com o gesto nas mãos e na cara, uma expressão vazia. Passadas duas horas, Gisela foi para o quarto e deitou-se feito moribunda. Cruzou as mãos por sobre o peito e pensou: E se?

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Alice não compreendia o amor. Alice não compreendia como uma pessoa entra na vida de outra, mexe, embaralha, muda as coisas de lugar e, depois, vai-se embora muito tranquilamente como se não tivesse feito nada.
Alice nunca, nunca deixaria ninguém vir bagunçar a sua vida. Nunca abriria mão de seus planos, nunca se jogaria nos abismos em que Esther e Gisela sempre se jogaram. Ela não.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Esther estava, por esses tempos, mergulhada em seu passado. Pensava em Janaína com a mesma força de antigamente. E via em Marcelas e Joanas o rosto que tantas vezes...
Alice entrara de surpresa.
Flagrante?
- Chove e Gisela está a se divertir com isso como quando ela era criança. Não compreendo os altos e baixos de nossa irmã.
Esther, que guardara as caixas embaixo da cama, rápida a ponto de Alice se quer ter percebido o ato, entendeu o perigo e a bênção do passado que não quer passar.
Gisela sorrira com a queda da chuva. Cantara há pouco com Bethania "Vamos chamar o vento? Vamos chamar o vento?". E a chuva era mesmo dentro dela. E não chuva triste. Chuva forte de quem faz da insegurança sua força e do risco de morrer seu alimento, como diria para si em uma quase oração. Gisela amava ainda M. Sabia. E amaria M com sua força de tempestade por tempos ainda. Porque Gisela gostava de estar ao lado de seu homem. Gostava de lutar o dia-a-dia junto de M. E M se descaracterizava longe de Gisela, ainda que ele não soubesse bem nomear o que sentia. Enquanto isso, Gisela chamava o vento e sorria com as chuvas e as borboletas em seu caminho. E assim, alimentava-se de seus dias tão arriscados, arriscados mesmo de morrer. A morte era-lhe um desafio. E até aqui, Gisela vencia. Ainda que não soubesse como.

domingo, 17 de abril de 2011

Gisela entendia sempre e cada vez mais. Cada conversa que ouvia de relance parecia que falava a ela. Cada coisa entrava agora em seu devido lugar e ela compreendia.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Resolveu caminhar pelas ruas do bairro para driblar seus medos. Pisou numa poça d'água e sorriu por sentir seus pés molhados. O fato fê-la lembrar-se de quando ainda eram as três muito jovens, no casarão da Rua Antiga. Sua mãe comprara uma banheira e quando Alice lá entrou, as duas irmãs já tinham desfrutado do pequeno luxo. Sentiu um tremor de corpo inteiro: mergulhou entre cheiros e delícias e pela primeira vez permitiu suas maõs...Quando ouviu passos na escada, percebeu, com o coração acelerado, que saberia dissimular se necessário fosse para a sua felicidade e gozo.
Caminhava distraída pelo corredor da sala em que daria aula quando ele surgiu em seu caminho. Suas calças jeans e sua camisa branca, cabelos bagunçados e um sorriso enorme nos lábios:
- Olá, Gisela!
Piscou de volta?
Sim, Gisela piscou de volta com o coração acelerado e uma incerteza: M sairia mesmo de sua vida?
Encontrara uma moça que lembrava Janaína. Não sabia exatamente o que naquela lembrava esta. Um jeito de olhar, um sorriso cativante...Não decifraria cedo assim. Era o primeiro contato. Tem fogo? Um sorriso e o fogo. Está frio aqui, não? E pôde ver as mãos da moça esfregarem-se uma contra a outra num gesto de consentimento. Pensar em consentimento era aquiscência para o seu coração dilacerado pela recordação antiga. Fumaram juntas aquele cigarro há tempos guardado na bolsa. Era o último de uma promessa antiga: deixar de fumar. Mas o ressurgimento daquela história era como uma permissão, um acordo tácito: cada cigarro um dia a menos? Toparia suicidar-se para reaver os abraços de...
Pensar demais era o que estragava todas as tentativas de sentir depois de tudo. E ela, que era cerebral, vivera até aqui meio insensível e à parte de toda a sensualidade que se não reprimira, escondera de si sem saber o que dela fazer.
Fumar, sentir o frio clima do lugar de esquina e observar pelo simples prazer do olho. Era a princípio o que deveria fazer.
Esther sabia disso e assim o faria.
Olhou-se no espelho e entendeu que sentia medo. Medo de viver e medo de morrer. Queria morrer e continuar vivendo. Sentia medo de sangue e medo de conviver por muito mais tempo com a grande dor que penava. Sabia que todos irião visitá-la e que depois todos voltavam para as suas vidas. E ela permanecia só de uma solidão feroz. Não queria mais. Porém gelava quando pensava aqueles pensamentos que deveriam ser secretos para não assustar aqueles que, ela sabia, fingiam importar-se. Olhou o telefone e pensou em ligar para as irmãs. Gisela corrigiria provas, Esther estaria a fazer qualquer outra coisa. Por que sua vida não era exata ou plenamente sua? Por que sentia daquele jeito?


Eram as dúvidas e certezas que pairavam no ar da casa de Alice bem dentro de seu coração
Acordaram, as três, cada uma em sua casa, com muita vontade de não acordar.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Alice pensava em Flora, a personagem machadiana. Flora não escolhera entre os irmãos gêmeos Pedro e Paulo, tão semelhantes e tão divergentes entre si. Também nunca decidira entre o piano e a pintura. A morte a acudira na indecisão: Flora se extinguiu sem compromissos afetivos ou profissionais.

Arrepiou-se com seu próprio pensamento. Tudo isso só poderia ser conseqüência do ataque maluco de Gisela. Mas o ataque fora direcionado para Esther e só para Esther. O que mexera tanto com ela, Alice?
Sorriu quando descobriu que o que lhe parecia tão ruim era, no fundo, muito bom. Pulou na cama como se tivesse cinco anos de idade. Lembrou de quando caminhara na rua há instantes, na volta da padaria, com leite e pão nas mãos. Sorriu, sorriu. Estava feliz, podia jurar a si mesma. Mas, como? Como se ela mesma achava que não nunca mais? Qual o nome disto que acontecia? Engano! Isso! Enganara-se e perdera semanas largada na cama, fazendo papelão, ligando e, logo depois, ficando muda...ela, logo ela que tinha voz. Sim! Ela tinha uma voz tamanha. Voz. Assim: voice, stimme, voix, voce. Língua, voz. Língua. Língua. Ela tinha língua, tinha voz, ela era também corpo, corpo, corpo. E de repente olhara para o espelho e vira o sorriso dele. Dele que não era M. Dele que era jovem como ela ainda era. Mas porque motivo imaginou durante tanto tempo que envelhecera tanto? Ela estava feliz.
À morte dos deuses sempre se segue o nascimento de outros.

Acho que era basicamente isso que cada uma delas pensava agora.
Alice ardia. Ardia em que fogo? Gostava das rajadas de vento lá fora. Ouvia que voz a falar com ela?
Pensava em fazer uma longa viagem. Elegeria dois lugares no máximo e o máximo de tempo em cada um deles. Sabia que se ficasse, depois daquela conversa, procuraria o rosto de Janaína em todas as esquinas.

Era o que Esther gostaria muito de não apenas pensar, mas fazer.

A aula

Enquanto preparava sua aula sobre a historiografia francesa, lera em Michelet:

"Duro destino do historiador: amar, perder tantas coisas, recomeçar todos os amores, todos os lutos da humanidade. Acabo de ler alguns sonetos de Petrarca. Mas de quantos sonetos e canzoni eu precisaria para chorar tantos amores infelizes que meu coração atravessou de século em século."

Dispersara a atenção. Pegou outro livro. Lera um dos poemas de Cantares, de Hilda Hilst. Pensou no mito do amor. As tão diferentes leituras embaralhavam seus pensamentos. Acendeu um cigarro. Há quanto tempo não podia fumar assim livremente? As sombras ainda rondavam-na e ela fumou sob sustos e vontades de apagar o cigarro a qualquer barulho que ouvia. Então pensou no mito de Narciso, na busca do conhecimento, a questão da sombra e do duplo e a intrigante relação entre amor e ódio, amor e morte.

Apagou o cigarro confusa quando veio à sua cabeça a imagem dele. Não de M! O que a assustou é que vira aquele que sorrira para ela na última aula enquanto encontrava-se com o amigo, aluno de sua turma.
Por que sua imagem ficara assim cravada em sua mente?
Não podia. Ele era muito jovem. Bem mais jovem que ela. E agora o sorriso dele a invadia como o girassol amarelo de Pessoa.

Acendeu outro cigarro e disse para si: Preciso re(a)prender a fumar.

Essa fora a primeira tentativa de Gisela de voltar.

Gisela

Ficara pela primeira vez em dias sozinha. Sentiu que tudo o que fizera foi, assim, necessário. Lembrava agora insistentemente de tempos outros, antigos, bem antigos e assustou-se quando se olhou no espelho. Era, então, hora de voltar?

Esther

Quando o vento batera-lhe na cara também trouxera chuva. Era tão sensória aquela sensação! Pensou no nome proibido e quase falou assim bem alto e com liberdade na rua. Mas gritara apenas: táxi, táxi!
Entrara e percorrera caminhos outros que não os para casa.

Alice

Assim que saiu a chuva não cessou de cair. Caminhara até o ponto de táxi perplexa. Gostava até que ponto dos pingos assim em sua cara? Ria tristemente. Aquela conversa despertara lembranças outras. Lembranças puxam lembranças e seria necessário um ouvidor eterno...Onde lera aquilo? Viera mesmo de sua cabeça? Alice estava perturbada. Via no rosto de Esther, sua irmã, a falta do filho, seu sobrinho, que morrera tempos atrás ou vira algo mais sombrio que ela mesma não se permitia imaginar no momento?
Táxi, táxi!
A lama em seu vestido seria o mínimo para dia tão longo.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Um pouco de Esther ou do rompimento do silêncio de Gisela

 "Em suas meias brancas, sete oitavos, saia de colegial, cabelos presos em um rabo de cavalo longo e simples, saía a ouvir música em seu walkman.
Mascava chicles e irritava metade dos professores com suas gigantescas bolas na sala de aula a estourarem em sua cara causando risos em toda a turma.
Não sabia seu lugar no mundo.
Fumava escondido no vão da escada. E aquela era toda a subversão que conhecia.
Trepava com o namoradinho no carro do pai. Rebolava macio, nuazinha em pêlo. Desistira, após conhecer Janaína, de estar com qualquer outro homem.
Olhava Janaína de forma fixa, apaixonada.
Um dia, deu-lhe um beijo no pátio do colégio e saiu.
Toda a escola rira.
Era mais uma dela.
Tatuou o corpo. Colocou piercing. Apavorou as freiras.
Saiu do colégio.
Voltou com cabelos curtos, azuis. E os chicles.
A barriga crescera, pontuda. Era menino.
Meias, tricôs. Chá de bebê. Janaína e o namorado.
A paixão enfiada no íntimo.
O menino com cara de nada. Em seus braços. Os peitos a derramarem leite e vida. A vida na boca daquele que gestara e a quem teria que aprender a amar.
Pintou a boca de vermelho. No contorno. Para fora dele.
Hoje, trancada em um hospício, cabelos desgrenhados. Roupas brancas e poucas palavras. Entre elas: Janaína. Janaína".

O assunto era tabu. Mas, foi o que Gisela jogou primeiro na cara das duas irmãs quando as ouviu chamarem M de "o talzinho". E assim o fez rompendo um silêncio de três dias. Esther calara-se por um momento e caminhou até o toca discos. Lá, pode encontrar ainda o disco Fa-tal - Gal a todo vapor. Acendeu um cigarro, colocou a vitrola que há anos não rodava disco algum para funcionar e girou as duas irmãs na sala cantarolando com lágrimas no rosto e sorriso na boca:

"Não choro,
Meu segredo é que sou rapaz esforçado,
Fico parado, calado, quieto,
Não corro, não choro, não converso,
Massacro meu medo,
Mascaro minha dor,
Já sei sofrer.
Não preciso de gente que me oriente,
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual,
Tudo legal,
Mas quando você vai embora,
Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
Vejo o rio de janeiro
Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto
"

As duas rodopiavam com caras assustadas. Pararam, sentaram-se, cada uma servida com uma dose de Whisky barato puseram-se a conversar.

A solidão iluminada

"Como amava ouvir aqueles discos mesmo que sozinha.
Que vida tão louca imaginava ouvindo as composições daquele que era o seu compositor predileto.
De repente o clarão.
Deu partida no carro e correu para a praia.
Deserta a margem. A lua invadia a cidade, a beira-mar, espalhava-se no oceano como uma moça bonita e cheia de si encarava-se em um espelho.
Desligou os faróis, sentou-se. Sentia o cheiro salgado invadir-lhe todo o ósseo corpo.
E a lua.
Compreendeu que era sozinha.
Riu de si para si.
Voltou para o apartamento.
Ligou o som.
Apagou a luz.
E agora em sua sala pensava: que lua, meu Deus!"

Fora esse o texto que Gisela esboçara um pouco antes do fim com M. Preferia falar M. M era despessoalizado, era uma letra que, algum dia, poderia julgar qualquer. Mas, não. M rasgou-lhe o coração com um só golpe quando, em silêncio, deixara as chaves de casa em cima da mesa da sala de estar e dissera apenas:
- Volto para buscar as coisas quando você estiver mais calma.
Ali M deixou de ser letra qualquer para ser a marca de sua vida. Digo de Gisela.

Alice se aborrecia com Gisela, Esther se impacientava com as duas. Mas, Gisela chorava dia e noite, telefonava para M, ficava muda, faltava às aulas na universidade onde ensinava e não podia mais ler, não mais assistia a filme qualquer...Gisela entendia apenas, ao reler o seu texto, que era só e que escrevia piegas, nunca conseguiria ser uma escritora de verdade. E, assim, à margem do que mais amava, ela se consolava em ser professora universitária e em perder o seu grande amor para uma crise boba da ciúmes.

Das divisões

"A gente separa os livros, mas não separa as leituras que fizemos destes mesmos livros, tantos com dedicatórias, outros com histórias muitas...
A gente separa os cd’s, mas não separa os dias todos em que ouvíamos música trancados em seu quarto, em silêncio e sob a expectativa de um futuro feliz juntos...
A gente separa os filmes, mas não separa a experiência de vê-los a cada um juntos, observando os cochilos do outro, rindo com as reações mais pueris e sinceras, emocionando-se com a emoção do outro, falando pouco e entendendo muito, as vezes segurando as mãos, outras não segurando o tesão...
A gente separa as contas a pagar, separa os móveis, separa as roupas de dentro do armário, mas não esquece os lugares aonde fomos juntos, as tantas viagens que fizemos juntos, não esquece os muitos aniversários, as longas conversas antes de dormir, as aventuras fogosas que o desejo não deixava nunca que parássemos de viver, as gratas surpresas, os projetos muitos, as realizações parcas (mas felizes), os consolos nas horas ruins, as flores de repente, o número da camisa errado, a febre curada com mel escondido na caneca de chocolate quente, o cuidado, o carinho e a amizade, o toque mais provocante e a palavra mais engraçada...
A casa fica sim vazia de um de nós, mas as marcas da convivência levaremos por um bom tempo na memória do corpo, na falta daquilo que já não sabemos mais nomear de tanto separar..."

Fora isso, oh Esther, fora isso que dissera Gisela ao talzinho quando este veio, por fim, buscar as caixas que a ela cortavam o coração e deixavam uma esperança que só ela sabia nutrir de que conversassem e reatassem de uma vez elimando maus entendidos, ciúmes e um tanto de orgulho ferido! Indigna-me a irracionalidade de nossa intelectual irmã. Agora está ali, jogada na cama, com um pijama grosso, de flanela, num calor de 40 graus, a cara inchada de muito chorar e não fala uma palavra comigo há mais de três horas. Já inventei as mais diferentes doenças para cada pessoa da Universidade que liga para cá querendo saber o motivo de sua ausência logo hoje na reunião de departamento. A essas alturas, cada um já deve ter entendido ou que ela  levou um baita pé na bunda e que, por isso, não consegue se quer levantar-se da cama ou estão todos preparados para um velório em breve, pois tanta doença numa só pessoa: venhamos ou convenhamos...
Indigna-me tudo isto na única de nós que viajou para o exterior para fazer doutorado, sob as lágrimas de mamãe e sob a proteção financeira total de papai!

Fora isso que falara Alice a Esther que olhava impaciente para todos os lados. Impacientava-se com o relato em tom competitivo de Alice e com a insistência dramática em sofrer de Gisela.
E eu, eu não entendia muito essas vozes todas, todas inclusive parecidas, macias, guardavam como que uma semelhança assutadora. E eu que estava dentro de um ônibus urbano me limitei a pegar uma caneta e anotar as principais informações.

Qual o susto quando abri a porta de meu apartamento e lá encontro a cena que precariamente escrevera em pedaço de papel?